domingo, 24 de abril de 2011

Assombração (I) - Zorra e visão do capeta...

Assombração (I) - Zorra e o capeta...

No interior do Brasil, ainda hoje é comum classificar todas as coisas sobrenaturais e do além numa categoria comum, chamada de "assombração".

Asssombração, pois, é designação para um tipo de manifestações, que incluem fatos e situações inexplicáveis, as chamadas "aparições" de pessoas mortas, animais e coisas, acontecimentos e fatos inusitados e com tintas de coisa sobrenatural ou vinculação fatalista com acontecimentos preliminares, e o encontro com figuras de natureza estranha ou demoníacas - muitas delas, vinculadas ao folclore ou à mitologia religiosa.

É uma variada gama de (supostas) manifestações, que, muito embora não tenha a notoriedade gótica dos castelos e vilas européias (e já me vem à memória a famosa história do fantasma do castelo de Canteburry), mas a variação de suas manifestações e publicidade entre o povo do interior, remontando e estando vinculada à saga da lenta e custosa ocupação do sertão brasileiro.

No dia de Ano Novo, muita gente veio à casa de meu pai para visita e cumprimentos, entre parentes e amigos. Pela tarde, formou-se uma roda de parentes e amigos, na varanda da casa, e a conversa ia animada e alongada. Num certo momento, chegou um conhecido da família conhecido pela prosa e por divertidas histórias de personagens da região. Não demorou e, meu irmão lhe pediu que contasse alguma história do Zorra (Zórra - e, não me perguntem por quê), cabloco interessante da região do córrego São Domingos*.

O visitante contou a história de um baile na região do Santo Antônio - no lado oposto do rio Turvo, em que Zorra e um amigo foram, em busca de diversão.

Chegando ao baile, que era animado na base da sanfona, pandeiro e violão, trataram de se divertir e tirar as mulheres presentes para dançar. Como não haviam muitas, se dirigiram para uma mesa do canto, onde duas senhoras estavam sentadas e as convidaram para dançar. Mas, as tais senhoras, muito educadamente, informaram que eram casadas e, não podiam aceitar o convite.

Foi então, má idéia, que os dois cabras, já meio animados por uns fartos goles de pinga, resolveram invocar um antigo e abastado costume sertanejo, informando a elas que, se não dançassem com eles, não dançariam com ninguém. Aí, já viram, as mulheres se sentiram indignadas, contaram história para migos e parentes e, estes vieram dar-lhes um chega-para-lá.

Zorra e o amigo sairam corridos do baile, com uma penca de sujeitos atrás, querendo tirar satisfação. E trataram de entrar no cerrado, para alcançar o baixadão do rio Turvo. Mas naquele terreno difícil perceberam a aproximação dos perseguidores e fortes estalidos no ar. É claro que não perdiam tempo em verificar o que era o tal estalido, que alguém do lugar perceberia facilmente que era o estalar de uma pinhola (espécie de chicote longo e sem cabo,feito de couro de boi, usado pelos vaqueiros, para conduzir o gado)...

Depois de atravessar a mata ciliar do rio, entraram sem pensar na água e chagaram à outra margem mais abaixo, enquanto ouviam os gritos e os estalidos de pinhola bem próximo de suas costas. Todavia, depois da mata do barranco do outro lado, tinha um baixio empatanado, vazante preenchida na última enchente. Mas, pensavam eles, não havia o que fazer, e entraram dentro do chavascal, só pensando em salvar a pele.

E aí, como moravam em direçõe diferentes, cada um dos amigos foi para um lado - e a pinhola estalando, lá atrás. Zorra se esforçava: onde dava para nadar, nadava. Onde não dava, se arrastava, agarrando o capim e, onde estava mais firme e raso, andava para não jogar os bofes pela boca afora.

Em certa altura, porém, certamente movido pela mistura do medo, agitação e as pingas na cuca, Zorra voltou os olhos para um ponto do pântano, no meio de moitas de arbustos e viu imediatamente uma coisa estranhíssima, gigantesca, com braços pernas e tudo, mas com a cabeça cheia de galhos e folhas e, logo notou que a coisa começou a se movimentar e vir para o seu lado. Nesta hora, tomado pelo pavor, já esquecido do motivo inicial de sua correria, esforçou-se ainda mais para alcançar o chão seco e chegar à segurança do lar, enquanto ouvia ainda grito, estalidos de chicote e, via, olhando para trás, que o tal ser avançava vigorosamente pelo pântano, silencioso, decido e solene, indiferente à dificuldade de movimentação por ali.

De repente, chegou ao pasto e logo viu a cerca de divisa de terras, onde megulhou entre os fios de arame farpado, para, poucos segundos depois, chegar à varanda da casa, arfando e bufando feito um doido, com um braço e as costelas sagrando. Dona Fia, esposa do dona da terra, havia escutado a latumia e abriu a porta, para ver o que acontecia. Quando viu o rosto apavorado e molhado de suor do rapaz e braço e camisas ensanguentados, perguntou:
- Mas o quê que é isso, Zorra? Parece que ocê viu o capeta!...

E ele, engolindo golfadas de ar, respondeu:

- Dona Fia, se aquele trem que tava me seguino ali atrás não for o capeta, nada é!...

* No interior do Estado de Goiás, os nomes das regiões de um município são geralmente estabelecidas pelos nomes de córregos, rios, morros, montanhas, vegetação típica ou mais notada ou, ainda, por algum nome curioso, vinculado a algum personagem ou fato relativo à origem do lugar. Exemplo: (córrego de) São Domingos, (córrego da) Água Branca das Morangas, Córrego Azul, (baixada da) Muriçoca, (povoado do) Quebra-Coco, (terras devolutas do) Monjolo Velho, (região do) Queixada, (terras dos) Patrícios, Morro do Chapéu, (morro da) Abelha, (alto da) Taboca, (capela de) Santo Antônio e, assim vai.

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